Irei prestigiar um banquete mental hoje a noite. Depois de encostar a cabeça no travesseiro, me virar pro lado, encarrar o teto, abrir a janela e ver o quase escuro do céu, quero ser servida de janta.
Após fracassos consecutivos, sem ter muita escolha ou mesmo consciência da situação, acabei por me desmontar. Passei pelas navalhas cotidianas e como se saísse de uma carniceria em um seriado qualquer de horror, me encontrei assim. Nessas partes brutalmente cortadas, vivo. Minha pele já apresenta um fundo com tons azulados, os ossos quebrados, brancos como titânio, chamam atenção no meio ao sangue. Os músculos parecem estar grudados aos tendões maltrapilhos, sem se esquecer de toda a gordura amarelada. Todos expostos.
Quando ando na frente daqueles que me veem, tento não deixar nenhum braço, pé ou olho para trás, junto com a listra de sangue, que como uma sombra, me lembra que não estou inteira.
Desse modo, o chef de cozinha que irá me preparar para a ceia terá menos trabalho. Apenas me colocar em uma panela cheia de água fervente e um pouco de sal será suficiente. Sem desossar, sem arrancar as tripas. Elas já estão descoladas da pele.
Não será necessário nem apresentações mirabolantes no prato e técnicas avançadas de preparo. Mas será necessário fazer um grande evento. Muitos convidados de honra, cortinas grandes, vermelhas e cheias de pó, sem falar das messas desnecessariamente compridas em uma esplendorosa sala de jantar. Todos em volta do meu corpo, me vendo, comendo todas minhas partes tangíveis, físicas, palpáveis. Assim, não precisarei me esconder nem de mim mesma, daquilo que me tornei após errar.
Depois que cartas de agradecimentos dos convidados chegarem, colocarei de volta o espelho no meu quarto. Nesse espelho ensanguentado, ei de me erguer, ainda que com as pernas já desconexas do quadril, separadas anteriormente pela lâmina. Ao passo que as estrelas dão espaço para o sol, guardo as louças, polidas, de porcelana e prata utilizadas na noite anterior.
Temporona
Talvez seja a quinta vez que leio esse e, dessa vez, nenhuma vírgula ou palavra me impediu, não precisei voltar pro início do parágrafo ou de dicionário qualquer.
ResponderExcluirConfesso que é, imageticamente, um dos meus favoritos. Chego a sentir um tanto de ciúme, um tanto de inveja, queria que fosse eu que tivesse escrito, mas fico feliz que tenha sido você.
Na verdade, agora, na quinta leitura, não tão feliz assim, pois acho que entendi. Acho que uma pintura feita a sangue, por mais vibrante que seja, seria mais bela se não existisse.
Uma silhueta quebrada, sem curvas, que se curva sob a mesa e curva palavras por escrever em cursiva. Uma mulher com curvas que me curva sem precisar de seus curvados cachos. Uma curva que eu tomo na vida que quase ocasiona um acidente, quase me desmembro quando me curvo em direção ao celular pra olhar pra você.
Notei hoje que, quando você escreve, mais vezes sim do que não, se olha no espelho. Acredito que eu, por outro lado, quase sempre que escrevo, olho pra você. É engraçado pois até nisso somos iguais, ou pelo menos poderíamos nesse sentido argumentar se quiséssemos concordar. Poderíamos também argumentar que somos diferentes, dizer que eu devia olhar pra mim mesmo para que existisse semelhança. Poderíamos nos alastrar nisso por horas como já fizemos muitas vezes. Aí, então, quando a fome vencesse, você, como de costume, conduziria o preparo de um lindo banquete. Longe de mim ser canibal, comeríamos algo mais convencional pra sustentar essa carcaça bela que temos. No plano das ideias, contudo, confesso que te devoraria quase que por inteira, me portaria como um glutão guloso, avançaria determinado e insaciável na tua direção. Por isso, agradeço o privilégio, agradeço por cuidar de mim, por não deixar minha alma ou mente definharem de fome, por dia pós dia me servir um prato com um dos mais plenos e saborosos amores que já tive a oportunidade de saborear.
Você que já me viu despedaçada e remendada, despedaça e colada mais uma vez, me ajuda a guardar as louças, me ajuda a poli-las, toda última noite dos meus fracassos. Você me junta do chão e me eleva a mim mesma.
ExcluirVou te ver definhar, de alma rasa, sem espelho no quarto e então, assim como você, te juntarei em um abraço.