Me sento em cima do livro de 857 páginas, das quais deveria por certo, pelo menos ter lido 368 e sinto o ardor de queimar a mão que segura esse copo plástico, com café quente dentro, comprado na esquina antes dessa. Na escadaria escondida que me encontro, ao meu lado, em uma montanha de grãos de areia, vejo dois gatos brigando para ver quem defeca primeiro.
O dia, quase juntando-se a um adeus do sol, cheira a melancolia. Um outro cheiro desagradável sobe junto a esse. Espero meu café esfriar apoiado na mesma escada que eu espero parar de me sentir atropelada pelos mesmos afazeres. Acho que espero esse café velho esfriar enquanto escrevo essas notas toscas para poder finalmente reclamar que ele está frio. Reclamar de outra coisa não quero.
Há algo de pesado e talvez desinteressante em mim, e logo assim, querendo me desprender da própria carne, prefiro falar que um terceiro gato chega na montanha e tem seus pelos negros arrepiados de raiva. Espero o tempo que não sei como passa, dos minutos que me restam e olho meu café morno. O copo segue bastante cheio, mesmo depois de ter sido derrubado junto a areia e junto ao meu tropeço na escada. Envolvida em um silêncio cortante, imagino que pudesse não ver mais ninguém, eu agradeceria e pararia de me enfiar em ruelas. Mês passado o mesmo pensamento me veio à cabeça, cheguei na mesma conclusão, enquanto tomava o recém café esfriado.
E não vi ninguém.
Não tive nem o trabalho de vestir outra roupa que não as de dormir, e meia viva, meio morta encarava o teto um dia, naquele depois do anterior, mais outro, e mais um… Depois de um tempo, sem saber o quanto exatamente, comecei a ficar apavorada com a ideia de morrer sozinha e não acharem mais meu corpo.
Vi a cena inteira diante dos meus olhos repetidas vezes. Os policiais fardados nas redondezas perto de casa, averiguando as câmeras de segurança, colocando anúncios de desaparecimento em jornais lidos por ninguém. Até quando, de repente, decidissem falar com meus vizinhos. Mostrariam minhas fotos e pediriam do meu paradeiro. Alguma pista, qualquer coisa… E então, se algum deles lembrasse que moro ao lado, depois de pensar uns momentos e reunir as palavras, diriam :
“- Ela? Aquela mulher patética? Tenho certeza que morreu em casa, completamente doente de si.”
Com um alívio de poder ir mais cedo pra casa, os policiais se dariam por satisfeitos. Nem olhariam dentro de casa, saberiam que eu estaria lá. Mandariam a funerária sem olhar o buraco da fechadura da minha casa.
E mês passado eu estaria.
E me enche de raiva, eles estariam certos.
Isso claro nos meus sonhos mais utópicos, pois não haveria funerária, quem iria pagar um caixão para mim? Agora que voltei quero entender como o cérebro consegue ter tanta vergonha dentro de um espaço só. Vergonha de não ter feito o que se deveria fazer. Medo de ver alguém que devo o algo que não fiz. Dois dias depois, no dia de hoje, depois de juntar meus trapos recebi uma mensagem: uma carta de despedida.
Meu amigo iria se matar na sexta, daqui três dias.
Ele recentemente anda com boas ideias, o que antes seriam raridade. Não tenho vergonha na cara o suficiente, e olha que tenho muita, pra dizer para ele aguentar. Quando eu estava em casa e todos viam que eu era patética, eu imaginava as pessoas olhando pra mim, me dando as costas e rindo. Com risadas animalescas de preencher o cômodo inteiro de som. Mas eu lembrava que ele entenderia a vontade de me largar as traças, no meu quarto quase mobiliado das coisas que escolhi serem a minha extensão em matéria.
E isso quase me alegrava.
E quase me fazia trocar o pijama.
Sexta-feira é depois de amanhã. O gato cheira a areia úmida de café e me encara, como se além dos humanos, os felinos pudessem entender que nem direito andar eu consigo sem queimar a mão.
Temporona
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