Eu adio, deixo as coisas para ter o que fazer amanhã, e amanhã chega, e eu não dormi, não faço nada. Não é sono que me falta, não sei nem como completar a frase.
Não faço ideia, simplesmente não sei mais.
Escrevi textos intermináveis, literalmente não-acabados, declarações de amor, fúrias de amor não correspondido, textos existencialistas, melancólicos, sádicos, que tinham tudo para serem algo que não são. Tenho embolado uma mão na outra, passo minhas mãos pelos olhos e escoro a cabeça. Como muitas uvas. Importadas, muito redondas e verdes. Há um prazer inestimável em escutar meus dentes quebrando a casca rígida de madrugada, onde junto ao vento, é o único som. Meu único deleite? Além desse, me aparecem palavras que não concluem textos, ardem na ponta dos dedos e não saem. Nada se conclui. Seria canibalismo roer as próprias unhas? Passo a mão na cabeça quando não consigo pensar, tento arrancar as ideias de lá. Não sei se penso mais. Às vezes sangue se esconde debaixo das unhas. Somos animais, sou uma.
Sou uma alguma coisa, visivelmente muito nervosa. Não tenho escrito pouco, e ainda assim, não tenho escrito nada. Seria mais fácil narrar o que se passa na minha vida. Se passam sangue debaixo das unhas, roídas e olheiras nos olhos redondos como uvas. Por qual motivo? Só quero falar das uvas, que melodioso, musical, sereno e ainda sim, estrondoso barulho que escuto quando as mordo. Se não escrever ideias amarradas fosse meu problema, eu o solucionaria, viveria a parte da sociedade por minhas esquisitices: juntariam todas as canetas, bradaria ofensas e as queimariam vivas, como se fossem vivas e como se fossem de pele, aí pronto, nunca mais se escreve nada, desviaria com duas esquinas de segurança qualquer papelaria. O problema é que só não escreve nada depois de se escrever tanto se as ideias andam confusas. E daí ando com essa cabeça quebrada pra um lado e para o outro, passo na frente de papelarias, sem problemas.
O que me deixou assim? Encorpadas, levemente ácidas, suculentas, e quando geladas, muito refrescantes.
Em fuga da realidade que me descompassou, acordo cedo, encero e visto meu sapato, saio de casa obrigada por mim. Volta e meia preciso acordar assustada, tirar o pijama com rapidez, me vestir, e desçer as escadas correndo até a entrada do prédio. Alucino que estou me perseguindo, realmente sempre estou próxima de mim. Quando o ar volta, compassa e os primeiros quarteirões passam, me orgulho de ter saído. Passo parte do dia fora, todos olham para mim e sabem o vigente estado dos meus emaranhados pensamentos. Não estou exagerando. Não é a pressa que me deixou mal vestida, não costumo sair desarrumada em dias tristes. Sempre se vê no fundo dos olhos quando alguém não tem a certeza de si mesmo. Recebo mãos tímidas nos ombros, escondem muita pena. Também teria se visse bicho de fundo de olho vazio. O dia é comprido, o passar das horas me agonia, caneta nenhuma me ajuda.
O que tem de errado? Eu sei, juro, vou contar, preste atenção. Mas agora? Agora, posso voltar e sei que elas me aguardam: as uvas.
Temporona
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